Por Helô Gomes
Ele estava de óculos escuros mas, mesmo assim, era possível ver que os olhos sorriam. Talvez foram os lábios entreabertos pelo canto da boca ou talvez o corpo dele inclinado sempre pra frente apesar do balanço do vagão que me fizeram reparar no sorriso dela (esse sim, escancarado e literal) diante da cena: um fone de ouvido parecia ser o motivo da alegre disputa.
Trocavam o aparelho de ouvidos entre si como quem troca idéias e beijos sem saber exatamente onde começa um e onde termina o outro. Entre risinhos e movimentos continuados, esses dois criavam um mundo só deles em que nada mais existia além do desejo de se desejarem. Pareciam dois cartógrafos, mapeando-se cuidadosamente, viajando-se, descobrindo-se, com a melhor das informalidades: aquela que elimina as falsas seguranças por trás das burocracias banais mas, ao mesmo tempo, não ultrapassa os limites da vulgaridade.
Como turista que fala a língua da cidade nova que visita: não conhece nada mas se reconhece em tudo. Tudo ali, aliás, fazia sentido e me fazia sentir como que se estivesse a assistir um espetáculo de dança, um ballet moderno que surpreende a cada movimento sem descompassar o ritmo ou bagunçar a harmonia. Fiquei hipnotizada. Confesso que menos de ciúme que de curiosidade: “peço desculpas pela minha indiscrição, mas, que música vocês estão ouvindo?”; olham-se, silenciam-se : “Nenhuma, na verdade, não está saindo som e a gente tá tentando descobrir se é o fio ou o fone”. Silencio-me eu inteira agora e bato palmas já com uma das pernas para fora do trem: “o amor é mesmo lindo, cego e surdo”.
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