Carinhosamente chamada de Unicórnia, por Caio Fernando Abreu, seu amigo escritor, é um dos pilares de nossa literatura contemporânea e possui uma vasta e complexa obra, incluindo a dramaturgia, a poesia e a prosa, somando um total de 40 publicações.
Tá, e quem é essa dona Hilda minha gente? Porque ela era mesmo dona da p**** toda, olha só:
Nascida em Jaú (1930), no estado de São Paulo, sua primeira publicação foi aos 20 anos, em 1950, com Presságio, volume de poemas. Concluiu o curso de Direito em 1952, mas optou por não exercer a profissão, entregando-se ao “ofício de escrever” ainda muito jovem. Seus poemas inspiraram o compositor Adoniran Barbosa (Quando te achei; 1960), e sua beleza tão sedutora, encantou o cantor/ator norte-americano Dean Martin.
Em entrevista, Hilda comenta que sua obra nasceu por causa de seu pai, porque como ela mesma disse: “Queria que um dia ele dissesse que eu era alguém. É isso.” Em seu refúgio, rodeado de árvores como as figueiras centenárias, ela redigiu as peças teatrais A possessa e O rato no muro, assim, dando continuação à dramaturgia com O visitante, Auto da barca de Camiri, O novo sistema, As aves da noite, A morte do patriarca e O Verdugo. Esta última conquistou o Prêmio Anchieta e os palcos de São Paulo e Londrina, sendo, posteriormente, editada em livro. O rato no muro vai ao palco no Festival de Teatro de Manizales, na Colômbia.
Zeca Baleiro e Hilda Hilst trabalhando nos poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão.
Em 1982, lançou A obscena senhora D (prosa), cuja narrativa é descentrada, deslocada e, tematicamente, traz o amor sob uma variação entre o terno e o pornográfico; o desassossego da alma diante das questões metafísicas; o enigma teológico que consiste na existência de Deus, do sagrado. Nessa narrativa, como nas outras anteriores, a fragmentação encena um lirismo pungente e muitas vezes perspicaz, ora tangido por um humor negro, ora pela fúria e revolta, e por vezes, pelos atos e fatalidades cotidianas. “[…] como tu mesmo, Menino-Porco, era esticado e leve, era rosado, e não sentia absolutamente nada, um dia na praia começou a correr em direção ao mar, mergulhou, e nunca mais emergiu.” É comum nas narrativas de Hilda haver o sintoma de “perda” da linguagem, porque ao buscá-la, a escritora aguça a luminosidade do vazio dentro do próprio vazio, esgotando as possibilidades de uma análise delineada do seu universo linguístico.
A frustração de Hilda em relação a sua obra não ser lida, fez com que ela resolvesse lançar ao mercado uma nova temática literária, no intuito de vender mais livros e alcançar o gosto do leitor, pois reclamava que sua obra produzida até então, não vendia. Por isso, em 1990, anuncia o “adeus à literatura séria” ao publicar O caderno rosa de Lori Lamby, que sinaliza sua fase pornográfica, já iniciada com A obscena senhora D. Nesse período, os editores rejeitaram-na, negando-se a publicar suas obras, chamando-as de “lixo”. No ano seguinte, sem desistir de sua nova fase, publica mais um livro de sua séria pornográfica, Cartas de um sedutor. Neste mesmo ano, O caderno rosa de Lori Lambi é traduzido para o italiano e, posteriormente, em 1999, é encenado nos palcos sob a direção de Bete Coelho, tendo no papel principal, a atriz Iara Jamra. Para sua surpresa, ganhou o prêmio Jabuti, em 1993, pelos contos de Rútilo nada.
Um ano depois, Os contos d’escárnio foram traduzidos para o francês. Porém, apesar da ideia em investir numa literatura pornográfica, a escritora não conseguiu vender mais livros, tampouco ser lida como tanto desejava, como ela mesma disse quando lhe perguntaram sobre o assunto: “Pensei: vou fazer umas coisas porcas. Mas não consegui. […] eu queria fazer uma coisa que, de repente, eles gostassem de ler. Não adiantou. Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica.”
As novas dimensões da obra de Hilda Hilst
Nos seus últimos anos de vida, Hilda Hilst viu as possibilidades de sua literatura alcançar novas dimensões quando soube de toda sua obra reunida e publicada pela Editora Globo. Ela, que sempre reclamara da falta de reconhecimento de sua literatura por parte de editores, críticos e leitores, pôde, antes de morrer, sentir os rumos que sua obra tomaria. Para os estudiosos de sua obra, a incompreensão de seus textos é porque eles subverteram a lógica narrativa, causando certo estranhamento, como acontecem com os grandes autores.
Outro motivo é que não podemos deixar de considerar que sua obra deixava frutos pelo caminho, por isso possuía significante qualidade literária. Morrera aos 74 anos, lamentando-se por ser uma escritora incompreendida, não muito lida, e pouco reconhecida, repetindo sempre que “Ninguém me lê.” Durante estes dez anos de sua morte, sua obra tem sido revisitada por tradutores de muitos países, pelos cineastas, pesquisadores, estudantes e professores acadêmicos. Para a comemoração dos 50 anos da Casa do Sol, em 2015, há um projeto de lançamento de um documentário por Gabriela Greeb, e um longa-metragem, dirigido por Walter Carvalho e protagonizado pela atriz Tainá Müller, ambos baseados na vida da escritora. Na França, foi traduzida desde 1994 pela conhecida Editora Gallimard, com Contes sarcastiques, vindo depois L’obscène madame D suivi de Le Chien. A saga de suas traduções para o francês prosseguiu com De l’amour précédé de Poèmes maudits, jouissifs et dévots e Rutilant Néant. Nos Estados Unidos, foram traduzidas mais recentemente, as seguintes obras: Cartas de um sedutor (Letters from a seducer) por John Keene, A obscena senhora D (The obscene madame D), por Rachel Gontigo Araújo e Nathanaël, e Com meus olhos de cão (With my dog eyes), por Adam Morris. Considera-se que a obra hilstiana, provavelmente, passou a viver o seu boom após essas traduções mais recentes no país americano.
Além do inglês e do francês, seus textos passeiam pelas traduções nas línguas italiana e espanhola. Sua obra, enfim, tem sido descoberta em terras estrangeiras, e isso é um sinal de que sua literatura possui uma dimensão bem além do que muitos imaginavam. Em 2013, a Editora Globo lançou uma coletânea de suas entrevistas, Fico besta quando me entendem, procurando redimensionar ainda mais sua vida e obra, através de relatos e diálogos que ela nos deixou registrado como um importante legado. Diante de toda essa ascensão editorial e cultural pela qual sua obra tem passado, é inevitável não nos lembrarmos daqueles “nós” de indignação atravessados em sua garganta, pelo seu pouquíssimo reconhecimento. Por isso, nada mais intrigante do que perguntar: o que a escritora Hilda Hilst diria sobre seu sucesso tão promissor nesses últimos anos?
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