Mesmo com protocolos de checagem de dados de estabelecimentos, criminosos encontram brechas para aplicar a fraude; veja como funciona o golpe no aplicativo de delivery
Uma das vantagens de plataformas de refeições prontas, como a do iFood, é concentrar numa única tela dezenas, até centenas de restaurantes. Isso facilita a comparação de pratos, preços e promoções. O problema é que, em alguns casos, os preços promocionais são iscas e os pratos não existem.
Um leitor que pediu para não ser identificado chamou a atenção para o golpe do restaurante falso no iFood. Ele afirma já ter caído no mesmo golpe três vezes, em restaurantes distintos.

O esquema funciona assim:
- O golpista abre um restaurante falso com ofertas atraentes.
- As vítimas, atraídas pelos preços baixos, fazem o pedido e pagam.
- O restaurante falso embolsa o dinheiro e não entrega a refeição.
- A vítima, estranhando a demora na entrega, tenta falar com o restaurante e descobre que números de telefone e endereços de e-mail ou são falsos, ou não atendem/retornam o contato.
Nas redes sociais (Reddit, Twitter), não é difícil encontrar relatos similares.
Quando um restaurante ingressa na plataforma do iFood, as primeiras avaliações e a nota média, que varia de uma a cinco estrelas, não aparecem. Em vez disso, um selo “Novo!” é exibido.
É essa lacuna que os golpistas exploram. Dias depois, quando o iFood libera a exibição das avaliações, surge uma avalanche de notas 1,0 (a menor possível) com relatos de pedidos não entregues anexados.
Embora não tenha sido possível verificar, é provável que os restaurantes com essa conduta adotem o plano básico do iFood, em que a entrega das refeições é feita pelo próprio restaurante, sem envolver os entregadores que trabalham para o iFood.
Isso porque, segundo alguns relatos encontrados nas avaliações dos restaurantes, esses dão baixa no pedido e o sinalizam como “entregue”, sem de fato entregar qualquer coisa, o que seria impossível com os entregadores aleatórios que respondem ao iFood, disponibilizados no iFood Entregas, o plano mais caro.
Centenas de avaliações e nota 1,0
Os restaurantes Panela de Barro Restaurante e Marmitaria e Labrasa Grill, ambos de Goiânia (GO), ilustram bem o golpe.

De cara, o Panela de Barro oferece “Promoçao Ate As 00 Horas De Hoje” (erros de grafia mantidos) com preços abaixo do normal, como um combo com duas marmitas de feijoada grandes e uma Coca-Cola de 1 litro por R$ 20.
Os dois restaurantes têm nota 1,0, resultado da média de 196 avaliações no Panela de Barro e de 712 no Labrasa Grill. A reclamação é sempre a mesma: pedidos que não são entregues.
Pelo menos até a publicação desta reportagem, ambos ainda apareciam no sistema do iFood.
Os dois restaurantes goianiense foram registrados no mesmo endereço: Rua Um, 101, no Parque Atheneu. De acordo com fotos do Google Street View de janeiro de 2019 (as mais recentes), nesse endereço há uma casa de alvenaria simples.

O Manual do Usuário também encontrou casos do tipo em restaurantes de regiões específicas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Fazendo uso de uma API do iFood, foi possível extrair listas dos restaurantes da plataforma em recortes geográficos e por tipo de restaurante. Foram analisados pizzarias e restaurantes de comida brasileira nas duas capitais, com notas entre 1,0 e 2,0, todos avaliados individualmente.
A análise revelou seis restaurantes paulistas e um carioca com características do golpe do restaurante falso. Em cada um deles, mais reclamações de pedidos pagos que jamais foram recebidos.
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Chamou a atenção o fato de alguns restaurantes apresentarem CNPJ. Pelo menos cinco restaurantes, registrados na categoria MEI (microempreendedor individual), deram baixa nos CNPJs recentemente.
Tal especificidade dá brecha para outras hipóteses que não a do golpe. Alguém talvez tenha se apropriado de contas de restaurantes fechados para aplicar fraudar o iFood? Os donos “esqueceram” de fechar a conta no iFood e seus estabelecimentos, que nem existem mais, continuam recebendo pedidos?
De qualquer forma, os transtornos e eventuais prejuízos continuam incidindo nos consumidores, usuários do iFood.
O Manual do Usuário tentou contato com cinco desses restaurantes. Em três casos, os e-mails eram inexistentes e voltaram. Os outros dois não responderam até a publicação desta reportagem.
E o cliente?

É possível solicitar o reembolso ao iFood em casos assim, mas o atendimento da empresa força a barra para que o consumidor se resolva com o restaurante. O que, no caso dos restaurantes falsos, costuma ser algo impossível: eles não atendem ligações nem respondem mensagens. Há casos em que dados flagrantemente falsos, como telefones do tipo “3333-3333”, constam no cadastro do iFood.
O Manual do Usuário teve acesso ao diálogo do leitor anônimo com o atendimento do iFood. Na troca de mensagens, o atendimento do iFood não consegue entrar em contato com o restaurante falso — e, ainda assim, este continua na plataforma.
Quando o leitor pergunta como denunciar restaurantes falsos, a orientação dada é fazer uma avaliação negativa do restaurante falso no aplicativo. (Não existe um meio de denunciar restaurantes falsos ao iFood.) O leitor insiste e, em resposta, o atendimento apenas repete a mensagem anterior, esta abaixo:
Se preferir você pode fornecer um feedback ao restaurante através da avaliação do pedido. Assim todas as suas informações ficam registradas.

Em alguns casos, o iFood faz o estorno do pagamento, mas não é algo imediato; pode levar até 72 horas para ser efetivado.
O cliente fica frustrado e sem a refeição, a menos que faça um novo pedido em outro estabelecimento.

No Reclame Aqui, plataforma onde consumidores podem reclamar e receber atendimento das empresas, buscas por “não existe”, “restaurante falso” e afins na página do iFood retornam vários casos.
Um curioso, registrado no dia 31 de maio e referente a outro restaurante de Goiânia (GO) diferente dos mencionados acima, diz que o número de telefone para contato cadastrado pelo restaurante era “33333”, ou seja, falso.
“Acessei o aplicativo agora dia 31 de maio para ver a situação, e o pedido está como entregue e concluído, sendo que não me entregaram nada, não existe o estabelecimento aqui fisicamente, e não me reembolsaram. E além de tudo não consegui ter contato com ninguém do Ifood!”, reclama o consumidor.
A real escala do problema
No dia 22 de maio, o Uol reportou o golpe do restaurante falso. A reportagem do portal detectou dez reclamações de dois restaurantes em São Paulo (SP).
A investigação do Manual do Usuário aponta que a escala do problema é um tanto maior, com restaurantes que exibem dezenas ou até centenas de avaliações/reclamações. O Labrasa Grill, de Goiânia (GO), é o mais expressivo, com 712 avaliações e nota 1,0, ainda que não seja possível dizer, com base na interface limitada do iFood, se o restaurante sempre agiu de má fé ou se houve uma guinada no negócio.

Ao Uol, o iFood explicou que novos restaurantes que solicitem o ingresso em sua plataforma precisam enviar “dados como CNPJ ativo, CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas), endereço e dados bancários da pessoa jurídica”, e que a empresa possui “um time interno especializado e dedicado para acompanhamento de atividades suspeitas em todo o país” e “tecnologia […] para averiguação de dados”.
O Manual do Usuário enviou as seguintes perguntas ao iFood:
- Quais critérios o iFood avalia antes de permitir a entrada de um restaurante na plataforma?
- Por que o iFood não oferece um canal de denúncias de restaurantes falsos?
- De que maneiras o iFood atua para impedir esse tipo de golpe e, quando ele ocorre, auxiliar as vítimas?
- Como as vítimas devem agir ao serem lesadas por esse golpe?
O iFood não retornou o contato até a data da publicação desta reportagem.
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