Diário do Movimento N3 – Desexistência

Por Helô Gomes

Esta noite sonhei com baratas. Não baratas comuns, pareciam lagostas, gigantescas com antenas sintonizadas mais em meu movimento do que em meu suposto medo delas que, confesso, há tempos já não existe mais. Ora, estes animais – os únicos capazes de driblarem até mesmo o fim dos tempos, apocalípticas, me causam mais curiosidade que náuseas e talvez por isso meu sonho kafkaniano me traz hoje ao teclado. Elas saiam de minhas mangas como ex amigas traidoras num vexame – com vexame – de abelhas que parte em debandada rumo a lugar nenhum fugindo sabe-se Deus de que vespeiro. Pobres coitadas. Não matei nenhuma deles, pelo contrário, tive o cuidado de deixá-las escorregarem pelo meu pulso sem quebrar uma casca sequer: ouvi dizer que, seres mutantes, multiplicam-se após a morte e valha-me Nossa Senhora ser minha raiva ou o meu desprezo um dos responsáveis pelo aumento de tais insetos no Universo. Curiosamente e, felizmente, ao contrário de nosso amigo Gregor Samsa, sofri um certo tipo de desmetamorfose ao acordar e a verossimilhançae se deu apenas nos poucos floreios e na ausência de adjetivos inúteis ao me olhar no espelho: eu havia me tornado um ser humano. DesExistido horizontalmente e me verticalizado em mulher. Que bom. Estava com saudades de mim mesma. 

no meio do caminho tinha uma psicanálise

3 lições de vida que aprendi com as sementes – e que me ajudaram a viver melhor!

As sementes são parecidas com a gente!

Somos cheio de potencial e de vida dentro de nós, mas podemos estar fechados pra balanço colocando todo esse mundo interior em stand by ou bombando de idéias e colocando tudo pro mundo.

Já repararam que quando a gente tá fechada pra novas histórias parece que construimos um muro em volta de nós para nos proteger?

Com as sementes isso também acontece, só que no lugar do coração fechado elas tem o ácido fítico que não só afasta possíveis predadores como atrapalha a absorção de ferro, magnésio, cálcio e zinco daqueles que ousarem chegar perto e forçar essa troca.

Como podemos ajudar as sementes a se abrirem pro amor e também melhorar nossa relação com elas? Afinal, a gente coloca essas belezinhas todos dias dentro de nós.

A resposta é: GERMINAÇÃO

Com um pouquinho de água e carinho conseguimos o melhor delas e todo mundo ganha com isso! Conheça 3 vantagens pra começar a germinar as sementinhas antes de comer!

1. Maior concentração de nutrientes

Uma das grandes vantagens aumenta em até 20 vezes o potencial de vitaminas e minerais presentes em um grão, quando comparado ao seu estágio não-quero-papo-com-você antes da germinação.

2. Melhor digestão e absorção de nutrientes

O processo de germinação digamos que deixa mais disponível pra gente aproveitar tudo que existe dentro dele.

O amido concentrado vira carboidrato simples, a proteína, vira aminoácido livre, então além de ficar mais simples a digestão, tem mais enzima digestiva então a absorção também melhora. Muito amor né?

3. ajuda a manter nosso peso

Como as sementes em forma de broto são cheia de coisas boas e maravilhosas e com baixa caloria, elas deixam a gente com um sentimento de plenitude gastronômica ajudando quem quiser manter o peso.

É muito melhor a gente se relacionar quando estamos prontos pra essa troca, não acham?

Vamos despertar não só na semente, mas em nós mesmas todo esse potencial para absorver mais vida e tornar tudo mais vivo e leve.

uma das plantas mais antigas do mundo, a flor da África do Sul representa transformação e esperança: PROTEA

 

 

 

mulhere inesgotável: seja uma também

Viva Hilda viva!

Hilda Hilst está na moda.

É engraçado porque Hilda é aquela peça vintage que ninguém deu muita bola quando foi lançada à época, e de repente todo mundo encontrou no guarda roupa da avó ao mesmo tempo e decidiu que é coisa de mulher moderna. Que brusinha linda, e tava lá encostada.

Finalmente resolveram entender aquela mulher que sempre dizia “fico besta quando me entendem”.

Mas, será?

Hilda não é uma camiseta escrito FEMINISTA, aquela que hoje em dia vende em tudo que é fast fashion e que noto que muitos estão loucos para vestir na escritora. Ela era, na real, uma mulher privilegiada, de família rica, que me parece ter sempre se preocupado mais com ela mesma do que com qualquer coletivo. E, apesar de ter usado muito vestido haute couture do Dener, eles não eram pra ela. O hype não servia nela, era pequeno.

Mas ela pode ser uma camiseta escrito “Aflição de ser eu e não ser outra”, mais uma frase tão famosa sua. Mesmo nunca tendo aderido formalmente a nenhum movimento político, havia ali uma mulher cansada da maneira como as mulheres eram vistas na sociedade, e exausta do que ela mesma era obrigada a se submeter para tentar ser lida, por ser mulher.

Em uma entrevista, certa vez, Hilda justificou sua fuga de São Paulo para o interior assim: “Porque ou eu fico fazendo esse puta charme dia e noite, andando pelas ruas, falando nas universidades que eu sou caralhal, ou eu escrevo. Qual é o meu negócio?”. Não é muito diferente do que disse a maravilhosa Roxane “má feminista” Gray em seu livro “Fome”, lançado esse ano: que ela queria poder ser lida apenas, sem ser vista. É preciso ser vista, analisada fisicamente, para decidirem se ela é ou não uma mulher que tem valor? Como se a aparência da autora fosse parte fundamental da qualidade de seu trabalho.

Hilda não era uma mulher delicada e submissa, embora muitas vezes defendeu essa mulher em sua obra. Ao mesmo tempo em que construiu personagens fortes e contraventoras, como em “A Obscena Senhorita D”, criou montes de personagens masculinos que, sob sua perspectivas, julgaram mulheres que não se encaixassem nos padrões impostos socialmente. Mas a própria Hilda nunca se encaixou e, na verdade, nem tentou muito. Poeticamente contraditória, ela.

“Fico besta quando me entendem”. Hilda não é fácil de entender. Mas ficar tentando entendê-la a cada poema, a cada livro, a cada imagem daquele olhar cheio de uma sabedoria dura é, certamente, uma delícia.

em homenagem à essa inesgotável mulher, fizemos uma inesgotável brusinha!

  • inesgotável porque a gente quer que você viva tantos momentos lirificados com ela que, assim, ela vai ficar pra sempre num lugar super especial na sua memória mas miga sua loka ou migo seu loko por favor não joga a pobrezinha na máquina porque ela é pintada à mão com tecido 100% algodão sustentável! hahah

ela custa 69,90 fichas, dá pra dividir em 3 vezes sem juros comprando aqui ou dá pra arrematar essa belezinha com a gente pelo Whatzapp (com link do Mercado Pago direto no celular) só chamar a Karol no 11 9712 9229 que ela vai te responder com todo nosso amor, carinho e good vibes.

Com afeto

Coletivo Lirico

“É chato ser brasileiro” – crônica (atualíssima) de Nelson Rodrigues

“O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas.”

Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: — a vitória final, no Campeonato do Mundo, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo, da Suécia, veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo, aqui, sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com “x” ou não iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: — analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas, e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do “lance a lance” da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.

E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete, que, hoje, é o meu personagem da semana, múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra, em todos os tempos, graças a es- ses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos: Ilusão! Os 5 x 2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos, aqui, percebem o seguinte: — é chato ser brasileiro!

Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais andam, pelas calçadas, com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas.

Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: — que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: — “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!” Ele vivia desfraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E se alguém punha em dúvida a humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis de camisola e alpercatas.

Mas vem a deslumbrante vitória do escrete, e o brasileiro já trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; reage diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou mais além: — diziam, de nós, que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.

E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos “os maiores” do futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem de cuspe a distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total.

Outra característica da jornada: — o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: — o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro. Um Didi, lá fora, observou uma calma, uma polidez, um equilíbrio que fariam morrer de inveja o major Anthony Eden. Amigos, na Suécia quem levou pontapé, do pescoço para cima, fomos nós. E, ainda por cima, roubaram a gente, bifaram os nossos gols, a nossa camisa. Mas tudo inútil, porque o Brasil apresentou o maior escrete do universo, segundo os mais exigentes críticos do mundo. Por fim, a lição do meu personagem. Ele ensinou que o brasileiro é, sim, quer queiram quer não, “o maior”.

Manchete Esportiva, Edição da Epopeia Brasileira, Edição Especial, 5/7/1958

e se me achar esquisita…

A ESCRITA DO FRAGMENTO
Susana Souto Silva (UFAL)
RESUMO
// Este artigo discute o fragmento como constitutivo da escrita clariceana, a partir de crônicas
dessa autora publicadas no livro ‘A descoberta do mundo”  (1984).
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
(Ricardo Reis)
De todas as imagens que a mitologia grega nos legou, a que representa a noção de tempo é uma das mais instigantes: Cronos, o pai devorador.
A sua narrativa assusta-nos e comove-nos. Fala do que é em nós a corrosão cotidiana do tempo, a cruel
irreversibilidade do tempo, que, ao passar, “imprime em toda flor sua pisada”, como
canta Gregório de Matos.
Cronos, o deus, simultaneamente, doador e devorador da vida, é uma bela metáfora do tempo. Para escaparmos a essa devoração constante ou, ao menos, para esquecê-la ou lembrá-la esteticamente, temos a arte, e, mais especificamente, temos a literatura, a arte que se faz com palavras.
Cronos está presente em diversos vocábulos: cronológico, diacrônico, sincrônico. Está inscrito na palavra “crônica”, que pode ser lida como adjetivo (quando qualifica uma doença, por exemplo) e como substantivo, quando usado como gênero do discurso. Como gênero, foi muitas vezes considerado
menor.
Nos últimos tempos, porém, a crítica tem tentado quebrar essa régua invisível e injusta para se defrontar com os textos, sem a perspectiva de medi-los. Como destacou* Carlos Heitor Cony, um dos grandes
cronistas Brasil:
“A crônica só é gênero menor em termos de literatura. Admite-se como inabalável a certeza de que a literatura tende a ser perene, intemporal. Não faltam teóricos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literária, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crônica é crônica mesmo, expressão de finitude. É temporal, fatiada da realidade e desvinculada do tempo maior que é o da literatura
como arte.
A crônica atuaria, assim, em uma dupla temporalidade: a pretensamente perene da arte e a precária, fugaz, do jornalismo. O jornal é um suporte que comporta, simultaneamente, o que sobrevive e o que sucumbe à
passagem do tempo:
Mas daí não se deve concluir que ela seja uma defunta. Dizem que se trata de produto típico do jornalismo brasileiro, mas não exclusivo. Sendo por definição um texto datado, tem fases, sacrifica-se a modismos, mas, devido à elegância ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver em diferentes manifestações
pleonasticamente crônicas: como gênero (crônica) e como vinculada a um tempo (crônica também).
Flora Bender e Laurito Ilka também destacam a dificuldade de definir a crônicade modo categórico, devido ao seu caráter de gênero misto, de gênero impuro (mas qual seria, hoje, depois do advento do romance, puro?),
Quantos de nós divagamos sobre as pequenas coisas do dia-a-dia? Muitas das quais não aparecem estampadas nas manchetes dos jornais, revistas ou programas televisuais. São estes pequenos acontecimentos tão particulares – detalhes da nossa infância; reflexões filosóficas ou metafísicas sobre a vida, sobre os acontecimentos noticiados ou mesmo o efeito em nós de uma brisa suave numa tarde de domingo – motivadores de um texto, localizado nos periódicos, que para muitos teóricos é
considerado ambíguo (misto de referencialidade jornalística e narração literária), mas que se estudado detalhadamente apresenta autonomia estética, semântica e enorme abrangência temática, a crônica.
Gênero híbrido, avesso às definições estanques, mergulhado no fluir do tempo e sujeito as suas transformações, publicado em veículos nos quais predominam outras textualidades, a crônica tem com o tempo a relação de texto curto, que aborda um acontecimento atual (do tempo presente) e que também não se inscreve naquele desejo de sobreviver a ele. Mas muitas crônicas escapam das folhas que são levadas para embalar peixe ou acender o fogão à lenha. Entre essas páginas, quase sempre estão as
crônicas que são depois recuperadas em livros.
Clarice cronista: inclassificável?
No caso de Clarice Lispector, a problematização das possibilidades de escrita e seu constante insurgir-se contra a limitação das classificações levaram-na a escrever crônicas também diferenciadas. Por falta de tempo, ou, como ela mesma declara, por não saber muito bem o que significava escrever crônicas, a autora de A hora da estrela (1977) selecionava um fragmento (palavra importante para pensarmos a sua escrita) de um dos seus livros – romance ou conto – e mandava-o para o jornal. Outras vezes,
enviava um conto curto, que, posteriormente, era publicado com outro título em livro, como conto, não como crônica.
Clarice publicou muitas de suas crônicas no Jornal do Brasil, entre agosto de 1967 e dezembro de 1973. Vários desses textos foram depois lidos, selecionados e republicados no livro A descoberta do mundo
Vejamos alguns procedimentos utilizados pela autora para tecer suas crônicas, para desnortear o tempo, principalmente o tempo da leitura:
(Uma consideração inicial é o caráter fragmentário da crônica clariceana. Sua escrita trabalha contra a idéia de linearidade; os seus livros parecem dizer-nos, entre muitas outras coisas, que não há possibilidade de encadeamento lógico em que a causa preceda o efeito, criando, assim, um universo no qual o sentido estaria ancorado em uma articulação na qual predomina a causalidade, a explicação, o explícito. Antes, as
suas narrativas fazem-nos desconfiar sequer da possibilidade de articulação de sentidos
de modo inteligível. Somos lançados em um espaço em que a literatura flerta com a
loucura, com o sem-sentido. Somos desarticulados ou temos, ao menos, a noção de leitura como decifração desarticulada, em textos nos quais os enigmas se sucedem sem promessa de descoberta, pelo narrador ou pelo leitor, de seu segredo.
Em sua estréia, a fragmentação assustou os primeiros críticos. Álvaro Lins, Antonio Candido, Sérgio Milliet, críticos de renome, perguntaram-se se Perto do coração selvagem era mesmo um romance.
Para Candido e Lins, a descontinuidade dos quadros, decorrente da fragmentação da narrativa, comprometia o romance, entendido, então, como um gênero em que predominava a estreita articulação entre partes que se seguiam, em uma dinâmica da sucessividade articuladora do sentido, entendido como
superposição de dados e elementos da narrativa que mutuamente se complementavam e esclareciam. A crítica estava, naquele momento, orientada pela noção de romance realista, em moldes convencionais.
No conto, a fragmentação clariceana era mais tolera da. Ali, no espaço da narrativa curta, parecia que a escrita fragmentada estaria garantida/controlada e podia ser exercitada sem perigo para a articulação dos sentidos de um modo reconhecido pelos protocolos de leitura e escrita vigentes, pelos modos de ler e de escrever consagrados pela tradição.
E a crônica? A crônica traz, para a cena da obra clariceana, a possibilidade radical de fragmentação. Primeiro, por ser já um texto que não tem definição rígida, sendo visto mesmo como fragmento, como reflexão, narrativa, discussão, enfim, como seleção de um pedaço do tempo, do tempo cotidiano, político, cultural, do tempo em que o jornal atua, em que a história transcorre. Assim como Cronos, o cronista também devora seu bocado de tempo e dele faz seu texto, dando-lhe novos possíveis sentidos, deslocando o fato do olhar jornalístico ou historiográfico, das garras da ciência ou da informação, para oferecer-lhe o tempo da permanência da literatura, o tempo da fruição estética, que se abre para além da leitura do jornal.
Segundo, porque muitas das crônicas de Clarice são de fato pedaços, fragmentos, dos seus livros, dos livros que ela estava escrevendo e nos quais estava realmente interessada. Devemos lembrar que ela escreveu crônicas, porque o ofício de escritora de textos literários não supria suas necessidades financeiras, assim, ela produzia esses textos sem interromper sua escrita de romances e contos.
A crônica que se segue, por exemplo, foi publicada no Jornal do Brasil e, depois, em Água viva, livro de difícil classificação, conduzido por uma espécie de narrador lírico, que filtra tudo que narra por uma perspectiva interiorizada.
O fragmento de Água viva que se transformou em crônica, quando é inserido nesse volume, não
segue um encadeamento que o torna prisioneiro da dinâmica da sucessividade, predominante na noção de narrativa. E como crônica publicada em jornal também se distancia da idéia de comentário de acontecimento atual ao tempo da sua produção. É mais uma reflexão sobre as (im) possibilidades da palavra, mesmo da palavra em estado de literatura.
A Escrita do Fragmento – escrever as entrelinhas
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o
que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa
se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever
distraidamente
. (LISPECTOR, 1980, p. 21; 1984, p. 120)
Nesse fragmento/crônica, temos também um tema recorrente da escrita de Clarice Lispector: a metalinguagem. A palavra vista como frágil, mas também como único caminho possível para estabelecermos algum vínculo com o outro, com o mundo.
Aponta, inicialmente, para a existência de algo fora da linguagem, “o que não é palavra”, para, em seguida, constatar a existência apenas da palavra, ao menos como algo que nós, humanos, alcançamos. O que podemos apreender é o que se nos oferece, em um mundo humano, histórico, como linguagem.
Muitas são as crônicas sobre o ato de escrever, sobre a linguagem. A que se segue aborda a relação entre memória e escrita. Esta última sendo vista como um espaço simbólico em que o paradoxo habita, uma vez que “escrever é lembrar-se do que não existiu”. Como é possível essa memória do que não existiu? Com essa provocação, o leitor de Clarice é levado a questionar-se e a questionar a noção de memória como atrelada ao pretérito, como resgate do que de fato ocorreu. A memória aqui é pensada como ficção, como criação. A escrita, assim, é o lugar em que tudo passa pelo crivo da invenção, nada mais existe como dado, como fato, como determinado previamente.
Processo de contínua (re/des) construção, em que deslocamentos são operados. Lembrar-se do que nunca existiu. Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? Assim: como se me lembrasse. Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.
(LISPECTOR, 1984, p. 58)
Para terminarmos essas breves reflexões sobre a crônica clariceana e seu caráterfragmentário, um último comentário sobre um texto que se volta, assim como os anteriores, para a escrita. Agora não para a escrita como processo, mas para a circulação do texto, para o trabalho realizado por um outro profissional que também interfere na tessitura do escrito: o linotipista.
Há uma defesa do “erro”, de uma sintaxe que se distancia da convencional, pela pontuação que respeita a “respiração da frase”. Acusada tantas vezes de não se submeter aos ditames da norma culta, Clarice reivindica uma margem de liberdade, a transgressão, a possibilidade de respirar, de não sufocar seu
texto nas águas de um conjunto de regras que são também passíveis de questionamento e mudança.
Ao linotipista
Desculpe eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão direita foi queimada. Segundo, não sei por quê. Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
(LISPECTOR, 1984, p. 154)
* como a teste foi publicada em 1999, tomamos a liberdade de re-conjugar o tempo verbal 
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