Moda literária: Dom Casmurro de Machado de Assis

Registros realistas da moda em Dom Casmurro

Na última página do romance machadiano Dom Casmurro – reconhecidamente um dos mais instigantes por sua condição instável que não permite um fechamento no desenvolvimento da trama – nos deparamos com mais essa tentativa do narrador de envolver o leitor em suas infinitas artimanhas. A “fruta dentro da casca”: algo que se revela por sob a superfície, a casca, a máscara. Nosso convite é para que pensemos que dessa casca também faz parte a indumentária.

A roupa oculta e revela; é expressão de identidades e também denúncia. O primeiro aspecto acontece quando fazemos dela opinião, lugar de criatividade, de individualidade, de dizer coisas.

Já o segundo, que também diz coisas, diz as que queremos ocultar ou o que não queremos revelar, ou, ainda, diz das coisas que não sabemos de nós, contando nossos segredos. A moda pode, com essa estrutura, funcionar como estratégia de criação literária, como suporte para a construção de personagens ficcionais, porém, não somente para dar-lhes uma estampa, mas para criar identidades ficcionais coerentes com a imagem cênica da obra, possibili-tando a utilização da indumentária das personagens como pistas que conduzem o leitor à descoberta dessas identidades e também como armadilhas que o envolvem numa teia de dúvidas sobre as identidades, estas criadas no espaço ficcional da literatura.

É explorada então a ambiguidade e duplicidade presentes na moda, o seu aspecto contraditório e deslizante. Nesse sentido, a indumentária em Dom Casmurro parece contribuir para a constituição de contornos para as personagens, bem como para a construção de estruturas narrativas que privilegiam a ironia e a ambiguidade.

Mas, ao contrário do que seria de esperar, não há fixação de sentidos, e sim deslizamentos, o que indica a presença da instabilidade da moda no romance como parte do jogo irônico ali presente. Uma análise dos descritivos da indumentária das personagens da obra nos faz constatar que a ambiguidade e a duplicidade de vários aspectos da moda parecem ter sido utilizadas para a manutenção dessa atmosfera instável de que falamos.

Ao analisar os conceitos barthesianos sobre o traje de teatro aplicados à construção das personagens ficcionais de Dom Casmurro, percebemos que a indumentária possui na obra uma “função argumentativa” (BARTHES, 1977, p. 79) e, portanto, tem uma evidente importância na construção da ficcionalidade e dos jogos de enganos articulados pelo autor. Essa dimensão argumentativa contribui para a criação da dimensão psicológica das personagens e parece funcionar na obra como um jogo irônico de mascaramento e desmascaramento.Acreditamos que a presença marcante do universo teatral na obra propõe ao leitor se sentir muitas vezes espectador de uma peça que se encena, vendo nas personagens atores que simulam emoções e que se cobrem de trajes significantes.

O leitor é convidado a participar, de certa forma, da cena narrada – ao seguir e interpretar os caminhos da narrativa. A questão da indumentária no romance machadiano surge de uma análise da imagem criada para as personagens José Dias e Capitu (manipuladoras, calculistas, movidas por interesses), através do descritivo de sua indumentária, que se opõe à imagem de Bentinho (aparentemente inocente, ingênuo), sem suporte de indumentária. Para a análise, utilizamos o conceito que denominamos de autoficção possível ao usuário de moda, o qual permite a manipulação de peças do vestuário em favor da criação de identidades variadas num mesmo indivíduo. Castilho (2004, p. 135) chama essa estratégia de “protagonização de diferentes papéis sociais” por um mesmo indivíduo, comparando-o a um ator que se movimenta em diversas cenas.

No âmbito desse conceito está também o “trazer algo para si”, presente na palavra traje. Ao aplicá-lo à indumentária das personagens de Dom Casmurro, percebemos que pode funcionar como adjetivo, o que já foi apontado por Peres (2005) como uma das “insistências” de Machado indicadoras do seu estilo. Esse efeito de adjetivo, que sugerimos também ser função da indumentária das personagens da obra, ocorre quando possibilita a construção de uma imagem que possui certos contornos que só poderiam ser criados através dessa imagem. Mas, ao contrário do que poderia parecer, trata-se de uma imagem que não se fixa; nela está marcada a instabilidade da moda que denuncia a presença de um jogo.

Essa instabilidade pode ser vista também como reflexo da instabilidade inerente ao ser humano, que paira no romance através da errância de sentidos dos signos vestimentários, da camuflagem e do disfarce por eles permitida, do desejo apontado nas personagens de serem únicas e, ao mesmo tempo, de pertencer a um grupo. É então notável que a ficção, por meio da fragmentação das personagens, que lhe é inerente, permita representar a incompletude e a fragmentação do próprio ser humano, as quais também podem ser vislumbradas através do fenômeno da moda.

A moda está relacionada com a repetição, isto é, com o uso repetido de determinados produtos que acabam recebendo o status do que “está na moda”, daquilo que é do desejo do momento, estatisticamente comprovável. De forma ambígua a moda pode ser associada assim ao desejo de imitação, que está relacionado ao desejo de socialização, de pertencer a determinado grupo, mas também ao de individualização, de ser único, de se expressar através de seu próprio corpo, de se destacar dos outros indivíduos.

Poderosa editora da “Vogue”, Anna Wintour repete casaco quatro vezes em uma semana

por Maria Eugênia Tomazini Do UOL, em São Paulo 22/02/2012 aqui.

A editora-chefe da Vogue America, Anna Wintour, a mesma que inspirou a megera personagem Miranda Priestly no filme ‘O Diabo Veste Prada’ (2006) e que, fora da ficção, decide as direções da indústria da moda mundial como quem ‘sai’ e quem ‘fica’ na direção criativa das mais importantes maisons do mundo, cometeu aquilo que para muitos é a pior heresia em moda (e que para outros tem sido sinal da elegância moderna): repetir a mesma roupa num curto período de tempo. Neste caso, o longo casaco de oncinha foi visto quatro vezes em uma semana. 

A primeira ocasião foi no desfile da marca Proenza Schouler (15/2/12), durante a semana de moda de Nova York. Anna é conhecida como a madrinha do duo americano Jack McCollough e Lazaro Hernandez porque trouxe os ‘meninos’ para debaixo de sua asa depois de se apaixonar pelo trabalho dos designers. Três dias depois (18/2/12), a editora surge, em Londres, com o mesmo casaco para a apresentação de Stella McCartney – o evento contou com um jantar seguido do desfile da estilista. No dia seguinte (19/2/12), lá estava Anna Wintour com o mesmo modelito na primeira fila do desfile da marca inglesa Nicole Farhi, durante a London Fashion Week. Para fechar a semana de aparições de Anna e e sua oncinha, a editora foi fotografada na entrada de uma festa fechada na semana de moda inglesa. Alguém tem dúvidas sobre qual é a peça favorita do guarda-roupa da editora nesta temporada? Veja mais sobre moda aqui.

Voltando ao Dom Casmurro… e nossa moda literária:

Segundo Cidreira, é somente quando se reconhece esse “potencial mimético associado ao culto do novo” (2005, p. 36) presente no universo da moda que podemos compreender sua força e presença na cultura ocidental mediante a introdução e a solidificação do regime capitalista nas sociedades modernas. Utilizando esses conceitos, alguns trazidos do campo da literatura para a moda e outros que fazem o caminho inverso, procuraremos analisar Capitu, seguindo a sugestão do narrador de que há uma casca que recobre a fruta. Esta é a personagem machadiana mais enigmática, mais sedutora: por não ser apreensível, palpável, por “ser” no romance apenas pelas palavras de outro (do narrador), por não ter sua voz ouvida senão através dos ecos das outras personagens. Mas sua indumentária é bastante significativa e reveladora sobre sua presença no romance, ao mesmo tempo que não permite fixar sua imagem.

A primeira descrição que temos de Capitu em Dom Casmurro é a da “Capitu menina”, antes de se casar, ainda envolta em brincadeiras, mas como sugere o narrador, através de José Dias, já desejosa de “agarrar algum peralta da vizinhança” (ASSIS, 1960, p. 124). Na voz de José Dias, Capitu está em busca de um bom casamento e ascensão social, apontando para um desejo de mudança na família de Capitu, mostrando que almejariam o casamento desta com Bentinho.

Vejamos inicialmente seu descritivo: não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pe-las costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a bôca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. (ASSIS, 1960p. 44).

Percebemos a presença de indícios fortes da condição social e financeira da personagem, denunciada pelos materiais de que se compõem sua indumentária e pelo estado destes. Para uma moça de catorze anos que já deveria ter pretendentes para um casamento, Capitu se veste muito simplesmente e com um ar bastante pueril. O vestido apertado após longo uso e já desbotado feito de chita indica claramente que não havia dinheiro sobrando em casa para gastos com o vestuário.

A chita não só era como ainda é um tecido barato, específico das classes pobres no período e não fazia parte do vestuário das classes sociais altas, a não ser para anáguas ou acabamentos internos dos vestidos confeccionados em musselina, organdza etc. Os sapatos de duraque da personagem eram rasos e velhos e já haviam sido remendados por ela mesma.

A moda no século XIX podia ser imitada por pessoas de classes inferiores, mas o que as distinguia ainda eram os materiais com que eram manufaturados os trajes. Outro fator importante para atestar a condição social de Capitu, é o que o narrador diz de “ofícios rudes” nos quais Capitu precisava usar as mãos, o que parecia incluir costura de seus sapatos, indicando também a impossibilidade de ter novos. Entretanto, suas mãos “eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula”. A mulher de classe alta do período não se dedicava ao trabalho, fazia apenas bordados ou afins, pois para todo o resto havia escravos e trabalhadores. Capitu trabalhava em casa ajudando a mãe, mas esses ofícios ditos rudes pelo narrador não marcavam suas mãos, ressaltando a higiene e o cuidado de Capitu, mesmo não podendo dispor de “sabões finos nem águas de toucador”. O asseio para com o corpo e o vestuário era um ponto importante e bastante defendido por médicos e autores de manuais de etiqueta e civilidade e por jornais de moda da época.

Rainho, citando o Jornal das Senhoras, afirma: “de todos os cuidados que exige o toilette, o mais agradável, o mais natural, o mais simples, é o banho, que, além disso, é o que exerce sobre a saúde uma influência mais imediata”

(2002, p. 120). Então, se Capitu veste, na primeira parte do romance Dom Casmurro, um vestidinho de chita, meio desbotado e apertado, quando ainda não se casara com Bentinho, está marcada uma provável intenção: destituir a personagem da ostentação da imagem externa típica da mulher oitocentista, dos excessos da vaidade que seriam características naturais de uma moça de sua idade, apagar os traços excessivamente femininos, os laçarotes, as rendas, tão esperados numa descrição de moça do século XIX, ressaltando assim os masculinos, da simplicidade no vestir, do talento para a argumentação, raciocínio, manipulação. O autor parece optar por dotá-la dos elementos instáveis, que não poderiam ser amarrados num só sentido, pois pretenderiam promover e manter a ambiguidade. Será que essa escolha implicaria a ênfase em características da personagem: “desmiolada”, como sugere José Dias (ASSIS, 1960, p. 27), ou ainda “cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 1960, p. 63), ou “mais mulher do que eu era homem” como sugere o narrador (ASSIS, 1960, p. 73)? A imagem construída de Capitu pelo descritivo de sua indumentária, que se reflete em uma escolha do autor, promove a duplicidade de sentidos que não nos permite dizer seguramente se era desmiolada, dissimulada ou manipuladora, e muito menos determinar se a personagem pretendia um casamento de interesses e a traição ao marido.

Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios.

No capítulo “Os braços”, podemos ver a mudança que se apresenta na indumentária de Capitu, após seu casamento com Bentinho: (…) Arranjava-se com graça e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras môças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que prometi não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo. (…) De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que… Os braços merecem um período. Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provàvelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que êles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para êles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por êles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei cândidamente os meus tédios; concordou logo comigo.– Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas; o contrário parece-me indecente.– Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitu já me chamou assim.Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar. Ela sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escumilha ou não sei quê, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de Camões. (ASSIS, 1960, p. 182). Esse episódio é marcado pelo ar de sedução e recato, levado ao extremo no século XIX, de uma mulher vestida para um baile: ao mesmo tempo que se cobria, ambém se revelava. Souza (2001) diz que esse “jogo de esconde-esconde” dava-se com mais agudeza na noite, pois durante o dia imperava a simplicidade e o recato.

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Percebemos que Capitu também sabia jogar esse jogo. Aqui podemos imaginar Capitu trajando um espartilho, sob um belo vestido de baile, com decote e braços à mostra, mesmo não sendo dito explicitamente na obra. Esta parece ser a outra Capitu – a fruta dentro da casca – de que fala o narrador na última página do romance, a qual parece ser comparada à Capitu menina. À noite havia uma mudança nas regras de decência, na esperança de que no teatro ou no baile “o vestido su-blinhasse melhor a graça do corpo e os decotes deixassem transbordar os braços e colos nus” (SOUZA, 2001, p. 94). Esses momentos sociais para as mulheres solteiras, que viviam reclusas em casa às voltas com bordados e atividades domésticas, eram uma chance de conhecer homens que pudessem desposar e assim obter reconhecimento social, o que, segundo Stein (1984), só era possível para a mulher por meio do elemento masculino no casamento. A autora destaca a importância do corpo e da moda como artifícios de sedução para a mulher do período: “A questão da sedução tem, pois, neste contexto, um importante papel.

Ela é a maneira de a mulher, através de si, seu corpo, sua aparência, utilizar-se da possibilidade de influir no próprio destino”

(STEIN, 1984, p. 36).

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Com relação a essa questão da noite para o universo feminino oitocentista, Souza (2001, p. 95) aponta: Um tal contraste entre a severidade do vestido de dia e a surpresa do traje da noite reforçava, sobremodo, o ritmo erótico, o jogo de entregas parciais de que a mulher lançara mão para, sem ofender a moral burguesa de guardar as aparências, oferecer-se ao mesmo tempo a uma quantidade de homens. Aliás, essa posse a distância, realizada pela vestimenta em geral e muito particular pelo decote – e que funcionava tanto para moças solteiras como para as casadas –, foi talvez um dos mais poderosos elementos de equilíbrio da sociedade daquele tempo. E fazia da reunião mundana o momento agudo na luta amorosa.

A atitude sedutora feminina era esperada e compartilhada pelos homens do período que, de certa forma, se valiam do status que uma bela e ociosa mulher poderia associar à sua carreira e ao seu próprio sucesso. Capitu, enquanto se enfeitava e brilhava nos bailes que frequentava com o marido, encantando os olhos e alimentando a imaginação, além de provocar-lhe ciúmes, dava a Bentinho o que Souza chama de “contaminação de prestígios”, conceito atribuído em virtude da análise de uma crônica de Machado de Assis para A Semana, em que o escritor comenta o comportamento típico do Segundo Reinado de se valer das vitórias dos artigo próximos, o que ele chama de “glórias de empréstimo”, ou seja, “as vitórias dos mais próximos, que se refletem em nós” (SOUZA, 2001, p. 83). Um comportamento sedutor seria, assim, esperado de Capitu e apoiado por Bentinho. Esse capítulo do romance machadiano, “Os braços”, está repleto de ambiguida-des. Ao mesmo tempo apresenta Capitu como uma mulher que gosta de ser olhada e ressalta Bentinho como um homem ciumento. Este conta com o apoio de Escobar, que também parece ser um ciumento, de modo que não sabemos se Capitu deixa de expor os braços por causa dos ciúmes de Bentinho ou de Escobar. E para ainda acentuar mais dúvidas sobre a dissimulação de Capitu, tão aclamada por José Dias, o narrador conta que esta passa a usar uma escumilha, peça que tem dois significados, sendo o primeiro menos apropriado, mas também bastante sugestivo:

Escumilha pode ser tanto munição para caçar pássaros (ou homens) quanto um tecido fino e transparente, que é o que provavelmente Capitu portava: uma espécie de xale ou estola, “não sei que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de Camões” (CAMÕES, 2001, p. 62). Caça ou caçadora? Também aqui o narrador se vale de um artifício, já reconhecido por alguns au-tores, que é o de trazer para a narrativa outros textos (intertextualidade), mas retirar destes apenas o que deseja mostrar diretamente, ocultando o que mais interessa, com intenção de deixar em dúvida o leitor, manipulando sua atenção. Está lá, no Canto II de Camões, a ninfa sedutora que provoca ciúmes, ao mesmo tempo que amor: Cum delgado cendal as partes cobre de quem vergonha é natural reparo; Porém nem tudo esconde nem descobre; O véu, dos roxos lírios pouco avaro; Mas, pera que o desejo acenda e dobre; Lhe põe diante aquele objecto raro; Já se sentem no Céu, por toda parte; Ciúmes em Vulcano; amor em Marte. (CAMÕES, 2001, p. 62).

Vejamos a seguir o que podemos apreender da descrição da indumentária de José Dias e quais as implicações desta no jogo irônico presente no romance. O narrador descreve a personagem: Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim prêto, com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nêle uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquêle vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo! (ASSIS, 1960, p. 29)Ao descrever José Dias, o narrador associa todo o tempo o uso de sua indumentária à sua personalidade. Para o leitor atual, quando o narrador diz que a personagem “foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo”, mo não sabendo o que sejam presilhas, pode perceber a ênfase que se dá ao fato da personagem demonstrar, pelo uso desse acessório que foi moda, ser uma pes-soa tradicionalista, que mantém um acessório já fora de uso. Quando o narrador diz que José Dias usava “a gravata de cetim prêto, com um arco de aço por dentro”, que “imobilizava-lhe o pescoço”, o que “era então moda”, mostra ao leitor o caráter contraditório e calcu-lista da personagem: esta sabia muito bem lançar mão dos artifícios da moda, seu poder, para se projetar como desejava. Mesmo seu passo era calculado para causar impressão, pois era “um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência” e esta antes da conclusão. Todo esse descritivo sugere que a personagem age e pensa sob severa vigilância própria.A gravata com um arco de aço por dentro, a imobi-lizar-lhe o pescoço, também mantinha o seu rosto alto e conferia-lhe um ar austero e superior.

Quando o narrador diz que José Dias trazia as calças curtas e ainda com presilhas para ficarem bem esticadas e que eram brancas e engomadas, mostra como a personagem dava importância à aparência e, especialmente, à forma como era vista. José Dias queria parecer estar sempre alinhado, dando-nos a impressão mesmo de uma pessoa que se es-pichava, que se encompridava jogando o peito para cima.O fato de fazer um rodaque de chita parecer uma casaca de cerimônia dá ênfase à sua postura, isto é, mesmo usando uma peça leve e caseira como o rodaque de chita, sendo este um tecido ordinário de algodão ca-racterístico das classes pobres, portava-o como se fosse uma casaca de cerimônia que, segundo Laver (1989), era uma peça essencial para ocasiões formais noturnas. Mesmo no Rio de Janeiro, cidade quente de um país tro-pical, tal peça era amplamente usada para causar boa impressão. Tal uso foi identificado por Renault, em estu-dos de jornais da cidade, no ano de 1870:Como se veste a sociedade fluminense para ir ao baile, à sessão teatral, ao sarau, à exposição de arte, caminhar no Passeio Público?

A arte se associa à moda e nos leva a imaginar damas e cavalheiros a descer da carruagem à porta do Teatro São Luis ou do Cassino Fluminense. A casaca é o traje do cavalheiro. A casaca está em cena: dorme-se de casaca e amanhece-se de casaca, conta Luiz Guimarães. A casaca é de uso na festa de gala. O conjunto de “casaca de pano superior, calça de setim de lã superior e colete do dito” custa 65 mil réis. Para outras ocasiões usa-se a sobrecasaca “de pano fino de Seda”, agora anunciada. A mesma casa vende “gravatas de seda e de cetim, pretas e de côres, de uma e de duas voltas, ditas lisas e bordadas, ditas mantaretas e de côres, dita cachenez, de lã, ditas de botões para crianças”.

Renault faz um resumo do que vestia o homem fluminense em meados do século XIX. O traje masculino revela a nova situação social decorrente das mudanças políticas e econômicas do período, já mencionada anteriormente.

Nesse sentido, Laver refere-se à segunda metade do século XIX como um início de prosperidade que veio afetar a moda, visto que, conforme seu testemunho, “os acontecimentos políticos não deixavam de influenciar a moda” (1989, p. 210). Mas, talvez, o fato mais importante relacionado ao descritivo da indumentária de José Dias seja o que não se lê na narrativa, aquilo que está aparentemente oculto e não está dito diretamente: sua indumentária lhe daria uma função na família que não fica totalmente clara pelo relato do narrador, e que este parece mesmo querer anuviar. Segundo Gomes, a indumentária descrita de José Dias é característica de um mordomo da época: “A descrição do trajo de José Dias – trajo de mordomo, já um tanto raro no tempo –, predomina pela extrema meticulosidade” (1967, p. 40). Porém José Dias é apresentado pelo narrador como um agregado, isto é, alguém que vive numa família como uma pessoa da casa. O seu traje de mordomo deixa claro que ele não era parte da família e o próprio narrador diz as funções que assumiu: José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira cousa que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pagem; fêz-se pagem, ia comigo à rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. (ASSIS, 1960, p. 62). Essas atenções de José Dias, realçadas pela descrição de sua indumentária que o apresenta como uma pessoa calculista e contraditória, apontam para a construção intencional dessa personagem como alguém que se movia por interesses de se fazer importante e necessário numa família tradicional e rica como a de Bentinho. Conhecemos muita gente assim no mundo da moda e na vida, não é mesmo?

Percebemos então que não há uma definição exata na obra sobre a função de José Dias na casa dos Santiago: alguns trechos o aproximam do agregado, outros do mordomo. No capítulo “Um plano”, Capitu e Bentinho imaginam uma forma de obrigar José Dias a ajudá-los a tirar de D. Glória a ideia de mandar o rapaz para o seminário:(…) mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe também elogios; êle gosta muito de ser elogiado. D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não é isso; é que êle, tendo de servir a você, falará com muito mais calor que outra pessoa. (ASSIS, 1960, p. 56). Capitu ensina a Bentinho como deve proceder para que consigam o que desejam. É de extrema importância esse episódio do romance, pois, além de apontar para uma das duas possibilidades de atribuir uma função a José Dias na casa dos Santiago, também parece reforçar a imagem aparentemente ingênua de Bentinho, em oposição à imagem calculista de Capitu. É ela quem planeja e ele quem executa o plano. Vale seguir a Priscila Rezende, do Desinfluencer Roots (só clicar aqui) e a Camila Toledo, do Parecidinhos da Cami, aqui.

Podemos dizer que a forte carga de ambiguidade que está no descritivo minucioso do traje de José Dias e em suas relações com as outras personagens é parte da estratégia do narrador para criar o jogo irônico presente na obra. As incongruências no descritivo da indumentária de José Dias e sua personalidade, sua posição social na narrativa, nos levam a tentar compreender as intenções do narrador em não as definir ou em torná-las propositadamente contraditórias. Os efeitos provocados por essas incongruências na construção da personagem e, consequentemente, na narrativa como um todo, que, de acordo com Lima (2000), podemos analisar como mostrar uma coisa e significar outra, são nuances entre o ser e o (a)parecer que indicam a ironia.

Na moda, a gente chama esse recurso de trompe l’oeil (ou, engana o olhar, na tradução livre). Dá só uma olhadinha em alguns exemplos da moda contemporânea:

by Sayde Faraday

A análise da indumentária em Dom Casmurro pode ser considerada como suporte para uma pretensa veracidade que o narrador, ao que tudo indica, deseja apresentar na narrativa também pelos traços vestimentários. Mas, diante da potência instável e flutuante que é a moda, associada a outra igualmente instável e flutuante, que é a literatura, isso não se realiza. Ao contrário, a presença da moda como elemento da construção ficcional na narrativa de Dom Casmurro, como parte da ironia marcadamente presente na obra, amplia o deslizamento de sentidos, a sua não fixação.

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O que se realiza, então, é um jogo entre o ser e o (a)parecer, entre o mostrar e o esconder, jogo no qual as insinuações são muitas, mas não há confirmações. Essa confluência entre o espaço ficcional da moda e o espaço ficcional da literatura, presente em Dom Casmurro, ainda torna possível o vislumbramento do estado paradoxal da narrativa que, ao permitir a construção das personagens também pelo seu vestuário, se desnuda como ficção, como algo que é aparentemente preconcebido, ao mesmo tempo que exibe a sua errância na medida em que essas personagens parecem caminhar pelas próprias pernas.

Texto de: GEANNETI TAVARES SALOMON

Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa (PUC Minas). Possui experiência profissional em estilo, produção de moda e figurino. Leciona Moda no Centro Universitário UNA, em Belo Horizonte. Autora de Moda e ironia em Dom Casmurro (Alameda, 2010).

E-mail: [email protected]

NOTAS

[1] Este texto é parte da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas, em 2007. Seu texto integral foi publicado na obra Moda e ironia em Dom Casmurro.

[2] “Duraque, s. m. Tecido forte e consistente, que se aplica sobretudo no calçado de senhoras” (SILVA, 1948-59, p. 179).

[3] “Escumilha, s. f. (de escuma). Pequenos grãos de chumbo, para a caça aos pássaros (…). Tecido transparente de lã ou seda muito fina” (SILVA, 1948-59, p. 684).

[4] “Presilha, s. f. (do esp. Presilla). Tira de pano, cordão de cabedal, etc., que tem, geralmente, na extremidade, uma espécie de aselha ou fivela e em que se enfia às vezes um botão para apertar ou prender” (SILVA, 1948-59, p. 664). Segundo Laver (1989, p. 130): “As calças elegantes tinham muitas vezes alças que eram presas aos pés para garantir um caimento mais vertical”.

[5] “Rodaque, s. m. Bras. Trajo masculino, espécie de casaco e de colete” (SILVA, 1948-59, p. 647).

[6] “Casaca, s. f. (do turco kazak). Veste de cerimônia que cobre o busto do homem, por cima do colete.É de pano preto, provida de lapela larga e de abas que não chegam à frente” (SILVA, 1948-59, p. 982).[7] “Cachené (à), s. m. (do fr. cache-nez). Gal. Aportuguesamento do francês cache-nez. // Lenço forte de agasalho para o queixo, boca e pescoço” (SILVA, 1948-59, p. 700). Era um modelo de gravata característica do século XIX e, apesar de ser uma peça para climas frios, era usada no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Cultrix, 1960. BARTHES, Roland. As doenças do trajo de cena. In: _____. Ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 75-86. (Coleção Signos, nº 11).

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2001. CASTILHO, Kathia. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2004.

CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda: vestuário, comunicação e cultura. São Paulo: Annablume, 2005.GOMES, Eugênio. O enigma de Capitu. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

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Moda literária: cinto com fivela dourada e Machado de Assis

Tenho cá com meus botões que cinto marrom com fivela dourada vai bem em todos os momentos e fases da vida, igual o conto o Espelho, do Machado de Assis.

E eu posso provar:

O Espelho

Esboço de uma nova teoria da alma humana1

 Machado de Assis

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

– Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião – uma conjetura, ao menos.

– Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas…

– Duas?

– Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração.” Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma…

– Não?

– Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis…

– Perdão; essa senhora quem é?

– Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião… E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas.

Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos…

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

– Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos… Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o “senhor alferes”. Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o “senhor alferes”, não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples… Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom…

– Espelho grande?

– Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o “senhor alferes” merecia muito mais. O certo é que todas essas cousas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

– Não.

– O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

– Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

– Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! Adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! Pérfidos! Mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

– Matá-lo?

– Antes assim fosse.

– Coisa pior?

– Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram.

Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma… Riem-se?

– Sim, parece que tinha um pouco de medo.

– Oh! Fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra cousa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar… Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien (re) venir? Nada, cousa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma cousa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne… Cousa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

– Mas não comia?

– Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac

– Na verdade, era de enlouquecer.

– Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. – Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado… Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos… Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me… Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia…

– Diga.

– Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento… Não, não são capazes de adivinhar.

– Mas, diga, diga.

– Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e… Não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir…

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas. 

(In: Obra completa, 1992, vol. II,  p. 345-352)

Nota

1. Conto incluído pelo autor no volume Papéis avulsos, de 1882.

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